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Voto estratégico punitivo: transferência de votos nas eleições presidenciais de 2006

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Novos estudos CEBRAP
• Novos estud. CEBRAP (86) • Mar 2010 •
https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100008
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Voto estratégico punitivo: transferência de votos nas eleições presidenciais de 2006
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Resumos
O artigo discute as estratégias dos eleitores que transferiram seus votos para Lula no segundo turno das eleições presidenciais de 2006 a fim de testar a hipótese de que esses eleitores empregaram uma nova forma de voto estratégico no primeiro turno das eleições: o voto estratégico punitivo. Argumentamos que esse tipo de comportamento eleitoral foi decisivo para explicar as seguidas reviravoltas ocorridas nas eleições presidenciais de 2006. O artigo também explora os condicionantes para o voto estratégico em sistemas eleitorais de dois turnos.

Eleições; voto estratégico punitivo; transferência de voto

This article discusses voters' electoral strategies who transferred their votes to Lula in the second round of the 2006 Brazilian presidential elections. The goal is to test the hypothesis that voters applied a new form of strategic voting in the first round of the elections: strategic punitive vote. We argue that this type of electoral behavior was decisive to explain vote choices in the 2006 presidential elections as well as the conditions for strategic voting in ballotage systems.

Elections; strategic punitive vote; vote transfer between rounds

Voto estratégico punitivo: transferência de votos nas eleições presidenciais de 2006*

Lucio R. Rennó; Bruno Hoepers

RESUMO

O artigo discute as estratégias dos eleitores que transferiram seus votos para Lula no segundo turno das eleições presidenciais de 2006 a fim de testar a hipótese de que esses eleitores empregaram uma nova forma de voto estratégico no primeiro turno das eleições: o voto estratégico punitivo. Argumentamos que esse tipo de comportamento eleitoral foi decisivo para explicar as seguidas reviravoltas ocorridas nas eleições presidenciais de 2006. O artigo também explora os condicionantes para o voto estratégico em sistemas eleitorais de dois turnos.

Palavras-chave: Eleições; voto estratégico punitivo; transferência de voto.

ABSTRACT

This article discusses voters' electoral strategies who transferred their votes to Lula in the second round of the 2006 Brazilian presidential elections. The goal is to test the hypothesis that voters applied a new form of strategic voting in the first round of the elections: strategic punitive vote. We argue that this type of electoral behavior was decisive to explain vote choices in the 2006 presidential elections as well as the conditions for strategic voting in ballotage systems.

Keywords: Elections; strategic punitive vote; vote transfer between rounds.

A campanha eleitoral de 2006,na qual oito candidatos concorreram para o cargo de presidente da República, teve a corrupção como um dos principais temas1. Em junho de 2005, foi descoberto um complexo esquema de corrupção, em que estavam envolvidos partidos e líderes da base aliada do governo. Denúncias comprometedoras emergiram da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios, na Câmara dos Deputados, segundo as quais Marcos Valério, homem de negócios do estado de Minas Gerais, teria desembolsado dezenas de milhões de reais para o pagamento de políticos, dívidas do partido do presidente Lula (Partido dos Trabalhadores - PT), bem como para o financiamento ilegal de campanhas eleitorais. As denúncias de corrupção e os trabalhos da CPI tiveram uma ampla cobertura da mídia, com impactos negativos sobre a avaliação do governo, o que teria levado alguns analistas a darem como certa a derrota de Lula nas eleições em 2006. Não foi exatamente isso o que aconteceu. Muito pelo contrário, Lula quase venceu no primeiro turno, assegurando vitória maiúscula no segundo.

Em parte, a explicação do sucesso de Lula em 2006 passa pelo fato de o governo ter sido astuto ao lidar com a crise. Lula pessoalmente afastou-se de todos os envolvidos, exonerando-os de seus cargos. Além disso, o governo continuou a investir em sua agenda social, por meio de seu carro-chefe, o Programa Bolsa Família, e da manutenção da estabilidade econômica. Assim, a popularidade do presidente aumentou em maio de 20062.

De qualquer forma, em 2006, Lula enfrentou um ambiente eleitoral bastante distinto do de 2002; bem mais hostil e com forte oposição vinda não só da direita, mas também de antigos correligionários. Não surpreendentemente Lula focou sua campanha no sucesso da gestão econômica e da política social, utilizando o horário eleitoral gratuito na televisão para enfatizar seu desempenho político nas frentes econômica e social. Essa estratégia mostrou-se acertada, já que pesquisas de opinião pública apontavam vitória do presidente no primeiro turno3.

No entanto, em 15 de setembro de 2006, um novo caso de corrupção envolvendo o partido do presidente veio à tona. Dois homens foram presos em um hotel portando 1,7 milhões de reais para a compra de um dossiê que, supostamente, continha acusações contra o candidato ao governo do estado de São Paulo pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), José Serra. O caso teve ampla cobertura na mídia e foi usado exaustivamente pela oposição nas duas últimas semanas da campanha, afetando a imagem do presidente. Mais uma reviravolta: ao contrário das expectativas e das pesquisas eleitorais, o resultado do primeiro turno indicou que Lula obteve 49% dos votos, contra 42% de Geraldo Alckmin. Alckmin saiu-se muito melhor do que qualquer um esperava, e haveria um segundo turno.

Para muitos, as denúncias de corrupção envolvendo a pessoa do presidente teriam tido impacto direto sobre o resultado da eleição e continuariam a ter no segundo turno. Alckmin vinha em uma curva ascendente nas intenções de voto, ganhando momentum e se gabaritando para oferecer uma disputa acirrada no segundo turno. A oposição acreditou na possibilidade de vitória. Mais uma frustração e surpresa: no segundo turno, Lula conquistou a reeleição com 61% dos votos contra 39% de Alckmin, que perdeu votos em 23 dos 27 estados, ao passo que Lula aumentou sua votação em 11,5 milhões de votos.

Esse cenário eleitoral marcado por mudanças repentinas e surpreendentes, embora freqüentes, apresenta desafios interessantes para analistas do comportamento eleitoral. Quais fatores explicariam tais reviravoltas? Por esses motivos, a análise detalhada das eleições de 2006 cumpre função importante não só por explicar um evento histórico e interessante em si mesmo, como também para testar explicações sobre as escolhas eleitorais dos brasileiros derivadas de debates teóricos clássicos sobre comportamento eleitoral.

Primeiro, por que Lula não ganhou no primeiro turno? Isso se deveu, de fato, aos escândalos de corrupção? Será que eleitores que votariam em Lula no primeiro turno deixaram de fazê-lo para puni-lo por seu envolvimento indireto nos escândalos de corrupção? Se assim foi, esses eleitores, no segundo turno, voltaram atrás e reverteram seu padrão de apoio, votando então em Lula para evitar que um candidato menos preferido (Alckmin) ganhasse a eleição?

Para entendermos as escolhas eleitorais que permeiam essas indagações, buscamos apoio na literatura sobre voto estratégico/sofisticado em eleições, discussão raramente utilizada para explicar o comportamento eleitoral no Brasil. Nosso objetivo neste artigo é enfrentar as questões levantadas armados com pressupostos e hipóteses da teoria sobre voto estratégico e de técnicas de análise estatística de dados de opinião pública.

Nossa hipótese central é de que estamos diante de um caso interessante de voto estratégico se nossas interpretações sobre o processo eleitoral brasileiro de 2006 mostrarem-se corretas. Primeiro, eleitores que normalmente votariam em Lula, e que votaram nele em eleições anteriores, deixaram de fazê-lo no primeiro turno de 2006 por estarem frustrados com os recorrentes escândalos de corrupção. Mesmo assim, tais eleitores ainda teriam Lula em uma posição bastante alta em seu ordenamento de preferências sobre os candidatos. Ou seja, Lula ainda seria mais bem avaliado por esses eleitores do que seu adversário direto, Geraldo Alckmin. Assim sendo, e esse é o nos-so segundo argumento, esses mesmos eleitores votaram em Lula no segundo turno para evitar a vitória de um candidato ideologicamente mais distante de suas preferências.

Se isso ocorreu, nosso objeto de análise é um padrão de voto sofisticado que desafia as teorias sobre o tema. O componente estratégico do voto desses eleitores no primeiro turno é marcado pela punição a um candidato, Lula, em posição relativamente positiva no ordenamento de preferências do eleitor. Ou seja, não se deixa de votar no candidato preferido para votar em outro com mais chances de evitar que o candidato menos preferido ganhe - que é a idéia básica do modelo de voto estratégico -, mas para punir um candidato afetado negativamente pela avaliação retrospectiva de sua atuação, principalmente em uma das dimensões de tal atuação: envolvimento em escândalos de corrupção4. Além disso, a teoria sobre o tema, como veremos adiante, indica que a probabilidade de ocorrência de voto estratégico no primeiro turno de eleições de dois turnos é tida como remota, e no segundo turno ela só ocorreria sob certas condições. O que encontramos no Brasil, nas eleições de 2006, é a ocorrência de voto estratégico nos dois turnos da eleição. Dessa forma, propomos aqui uma contribuição para a teoria sobre voto estratégico identificando seus condicionantes em um sistema eleitoral de dois turnos, que estimula o voto sincero - aquele no candidato preferido, independentemente de quaisquer outras circunstâncias da eleição.

Ou seja, trata-se de um tipo de voto estratégico ainda não explorado pela literatura: o eleitor deixa de votar em um de seus candidatos preferidos para puni-lo. No primeiro turno, isso representou deixar de votar em Lula e votar em qualquer um dos outros três candidatos, mas principalmente um ideologicamente mais próximo a Lula. Não é um voto sincero, pois não se vota no candidato preferido, mas um voto que obriga haver segundo turno. O resultado, portanto, do voto estratégico punitivo no primeiro turno é o candidato mais bem colocado nas pesquisas deixar de ser eleito, forçando, então, um segundo turno. Esse resultado é distinto do que ocorreria se houvesse voto sincero: vitória de Lula já no primeiro turno. Chamaremos esse padrão de escolha de voto estratégico punitivo e testaremos sua adequação na explicação dos resultados de primeiro e segundo turnos nas eleições presidenciais brasileiras de 2006. Para tanto analisaremos os padrões de migração de voto entre um turno e outro dessas eleições.

Entender a migração de votos entre os candidatos, assim como o perfil dos eleitores que mudaram seus votos entre os dois turnos, ajudará a esclarecer por que um eleitor deixou de votar em Lula e escolheu outro candidato no primeiro turno. Também ajuda a compreender por que Lula recuperou esses votos no segundo turno. Afinal, pretendemos mostrar por que Lula não ganhou no primeiro turno e excedeu as expectativas no segundo. Para isso, precisamos voltar nossa atenção para a questão do voto sincero ou estratégico/sofisticado nas eleições de 2006 e seus motivos5.

O trabalho está organizado da seguinte forma. Primeiramente faz-se uma breve exposição dos conceitos referentes ao voto estratégico e à coordenação eleitoral. Em seguida, procede-se a uma análise do perfil dos eleitores que transferiram seus votos entre diferentes candidatos6, do primeiro para o segundo turno, com relação a: preferência e rejeição partidárias, nível de acompanhamento da campanha eleitoral, identificação ideológica, voto para presidente no primeiro turno da eleição em 2002, avaliação do governo e importância de temas nas eleições de 2006, em especial da corrupção vis-à-vis outras questões. Segue-se, então, uma análise de regressão multivariada que testa as possíveis explicações para a mudança no voto entre o primeiro e segundo turnos. Ou seja, o que, de fato, analisamos neste artigo são as explicações para os padrões de mudança de voto do eleitor brasileiro entre o primeiro e o segundo turnos das eleições de 2006. São utilizados os dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2006. Por fim, apresentamos nossas conclusões gerais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O VOTO ESTRATÉGICO

Em suas discussões sobre a lógica básica do voto, Anthony Downs descreve os princípios básicos do voto estratégico, sobretudo em sistemas multipartidários. De acordo com o autor, o eleitor racional pode, às vezes, votar em um partido que não seja aquele de sua preferência, para evitar a vitória de um candidato ainda mais abaixo em seu ordenamento de preferências. Quanto à lógica desse voto, chamado de estratégico, diz:

Um eleitor racional primeiro decide qual partido ele crê que lhe trará maior benefício; então ele tenta estimar se esse partido tem qualquer chance de ganhar. [...] Então, mesmo que prefira o partido A, ele estará "desperdiçando" seu voto em A se esse não tiver nenhuma chance de vencer porque muitos poucos outros eleitores o preferem a B ou a C. A escolha relevante, neste caso, é entre B e C. Como o voto em A não é útil no processo real de seleção, votar nele é irracional

7

.

Por outro lado, segundo Downs,na ausência de informações sobre o voto dos demais eleitores, o eleitor racional sempre vota no partido que prefere ou quando as informações que possui o levam a crer que seu partido favorito tem chance razoável de vencer. Tal voto pode ser descrito como sincero.

Assim, o voto sincero descreve a ação em que o eleitor deposita seu voto no candidato de sua preferência, independentemente de outras considerações. O eleitor não está preocupado com o ordenamento das preferências dos outros eleitores para definir seu voto. O voto estratégico, por outro lado, implica uma avaliação por parte do eleitor de como seu voto influenciará o resultado do pleito eleitoral. O objetivo é evitar o chamado wasted vote8 [voto desperdiçado] ou seja, votar no candidato que não apresenta chances razoáveis de vencer a eleição. Implica votar em um candidato ou partido que seja o segundo em sua preferência, em vez de votar no candidato ou partido preferido, motivado pela percepção de que o segundo possui mais chances de vencer do que o primeiro na escala de preferências9 (1996, p.40). Na linguagem cotidiana, esse tipo de comportamento ficou conhecido como voto útil, o que é propiciado pela ampla divulgação de pesquisas de opinião pública que apontam a intenção de voto para os distintos candidatos, permitindo estimar a chance de vitória de cada um.

Mas o voto estratégico não é decorrente apenas da informação sobre a probabilidade de vitória de todos os candidatos, mas também da intensidade de preferências acerca dos candidatos. A propensão a votar estrategicamente é maior quanto menor for a diferença na intensidade de pref

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